quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Fire's Street 69


Nasci na Fire's Street, 69, Estação Velha. Uma ruazinha modesta de frente para o campinho de pelada. De minha janela via-se o aterro e lá adiante a velha Sambra . Tempos bons, aqueles.

Naquela época, a rua se dividia em duas. A parte de cima, das chamadas "casas de família", começava a partir da mercearia do Velho Otacílio, meu padrinho. A outra parte, fazia divisa com o Forró de Alcatrão – o doutor cirurgião dentista, como se auto-intitulava o fundador da saudosa Escola de Samba Noel Rosa . Essa fatia da rua era dedicada à boêmia. Daí o porquê do caloroso nome de Rua do Fogo.


Figuras elegantes de Campina Grande desciam à ruazinha para dançar ao som da radiola de fichas da “casa-de-recurso” de Arlete. E essa estória de casa-de-recurso ouvíamos dos vizinhos, nós não entendíamos o que o termo empregado àquela casa queria denunciar. Para nós era uma casa como outra qualquer, só que muito mais alegre. Lembro muitas vezes das carreiras ofegantes, rua à baixo, para brechar - através da fechadura - a famosa radiola de fichas. Saíamos às pressas ao simples som do tamanco de Dona Arlete. Aquela mulher esguia e muito elegante, cujos saltos altos e andar alheio às janelas, impunha-lhes um respeito silencioso.


Aquela parte da rua nos aguçava o interesse devido às proibições, todas vãs, que nos eram impostas. Era justamente naquela metade que a vida nos parecia inteira. Ali estavam todos os motivos que nos alegravam: a música, as luzes, os sequilhos, os refrescos da bodega de Pedro Oreinha, o forró de Zé Braz, o terreiro de Umbanda de Vicente Mariano, a barraca de Antonio do Caldo e muitos outros encantos para nossos olhos pueris. 

Vez por outra a Rádio Patrulha descia a rua, era a Rita Pavone, alarmando que alguém seria detido por embriaguez, desordem ou pelas famosas brigas de giletes. Era assim a rua da minha infância. Uma infância dividida com meus três irmãos e muitos moleques.  E por falar em moleques, logo me vem a mente um dos nossos grandes amigos: um negrinho sapeca feito saci, o "nêgo Welson", como o chamávamos carinhosamente. Welson tinha um riso franco, farto e cheio de diabruras escondidas em seus dentes fortes. Era impulsivo. Lembro quando ele ganhou Belém, o seu carnerinho.Belém parecia um chumaço de algodão, era uma coisa linda. E lá íamos todos nós correndo ladeira abaixo, seguindo aquele brinquedinho de carne e lã. De que Belém morreu não me recordo, mas nunca esqueci o choro convulsivo de Welson anunciando a perda de seu carneirinho.

Assim como Belém, naqueles tempos nossos animaizinhos de estimação eram muito originais. Eu tinha uma galinha gorda chamada “Mãe preta”, meu irmão tinha uma tartaruga que comia mamão e respondia pelo simples nome de “Caguim”, ele também tinha uma raposa de louça, comprada à prestação pela minha mãe. Tínhamos jogo-de-botão feito de osso, outro de quenga de côco, um pega-varetas e um vai-e-vem. 


Bicicleta nesse tempo era coisa rara, a gente não entendia  como Silvio Santos distribuía tantas, durante o Domingo no Parque. Havia quem dissesse que tudo era devolvido na saída do programa. Conversa de gente grande para nos conformar. Mas como disse Raul Seixas “Sonho que se sonha junto é real” e, de tanto sonharmos, o desejo se materializou: um de meus irmãos ganhou uma bicicleta. Uma linda Monark – azul grafite – nunca esqueci o nome daquela cor que nos enchia os olhos. E para buscar a bicicleta? Não tinha menos de dez crianças acompanhando meu pai e festejando a boa sorte de meu irmão. Ali a alegria era uma alergia compartilhada, mais tarde, a bicicleta também.


Era um mundozinho muito feliz aquele. Longe dos bytes, dos sites, dos games. Sem maiores anglicismos. Ali a vida acontecia em tempo real, tinha todas as cores e era moldada em carne e osso, chão e suor, circo e pão.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Maio em setembro



Era setembro, imaginei ser maio. O mês de Maria, das noivas, das noites de novenas. De lírios brancos, açucenas, cajados-de-São José, sorrisos-de-Maria e florzinhas outras, igualmente singelas.

Era dia, imaginei noite. Junto à parede da sala, a velha máquina de costura: coberta de branco, feita de altar para receber a Virgem Maria. Duas velas erguidas em pires, postas nas laterais, copos de vidro improvisando vasos evocando à reverência Mariana através do cheiro das rosas amélia.

Era presente, imaginei passado. Senhorinhas antigas brandando "A treze de Maio na cova da Íria, no céu aparece a Virgem Maria..." Interessante perceber como tais senhoras cantavam com um R e um U bem pronunciados e espremidos em ViURgem Maria... gostava de ouvir essa entonação. 

Era sério, imaginei ser graça. Chegada a hora das preces individuais, no qual todos faziam seus pedidos, uma senhora muito fidalga, Dona Creusa, sempre rogava à gentil Santa uma "graça em particular". As crianças gostaram de tal. Nesse momento, era capaz da novena não ter mais fim. Meninos e meninas de olhos fixos e 'ventas" acesas 'fungando' para fazer as velas flamejarem, davam início a uma sequência interminável de pedidos de 'graça em particular'. Era o momento de graça, literalmente.

Era simples, parecia especial. Havia quem não gostasse. Dona Conceição mesmo, certa feita, resmungou: "Que danado esses "menino" tem pra pedir tanta graça em particular", não sabia ela que na imaginação nossa, tal graça deveria ser muito especial aos nossos ouvidos, então porque não clamar à Virgem para recebê-las também?

Era a vida e parecia ficção. Paqueras inocentes pareciam amor eterno.Naquelas noites santíssimas, à sombra das graças de Maria, aquelas crianças e senhoras pareciam personagens de um conto qualquer, aquela vida comezinha parecia imagem, vagueia ainda no passado, traz à tona maio, mesmo sendo setembro.


Geneceuda Monteiro - 10 de Setembro de 2012