terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O Vocabódario na mídia

REPORTAGEM VEICULADA NA REVISTA GLOBO RURAL
Edição 261 - Jul/07

Apresentação

Vocabodário - é um minidicionário de palavras e expressões próprias do falar nordestino, que sofrem a influência direta da caprinovinocultura predominante na região.

Devido essa riqueza cultural, resolvemos catalogar esses verbetes, com a colaboração de alguns alunos de Cabaceiras, para registrar o universo bodístico cabaceirense, somando mais uma atividade cultural à Festa do Bode Rei. O presente Vocabodário é uma proposta pedagógica, que busca agregar valor a cultura local, através do reconhecimento e registro da linguagem popular como fonte de referência da identidade e história de nossa gente.

Durante dois meses, sob a coordenação da pesquisadora Geneceuda Monteiro, estudantes fuçaram livros, tratados, textos de autores regionais e dicionários comuns, conversaram com professores, produtores rurais, parentes e vizinhos, sondaram a memória coletiva do município. O resultado é o Minidicionário Bodês, listagem de substantivos, adjetivos, verbos, metáforas e expressões populares relacionadas caprinocultura. Confira:

bafo-de-bode - s.m. pop mau hálito de quem bebe muita cachaça, catinga de boca
barba-de-bode - s.f. barbicha rala
barbicha-de-bode - s.f. barba pequena e rala semelhante à barba de bode; barba de adolescente (pop)
bê ou béééé - onomatopéia: som produzido pelos caprinos em geral
berrar - v. da onomatopéia bé (da voz da cabra), soltar berros, falar muito alto, gritar, rugir, chamar ou falar aos berros
berrador - s.m. aquele que berra
berrante - s.m. que berra, cor forte, instrumento de sopro feito com chifres, usado por boiadeiros em comitivas de gado
berregar - v. berrar muito alto, freqüentemente
berrego - s.m. berros altos, gritos contínuos
berreiro - s.m. berros altos, gritaria, choro muito forte
berro1 - s.m. som emitido pelos caprinos, grito alto de gente rude
bode1 - s.m. caprino em geral, macho da cabra, caixinha envernizada para guardar dinheiro, matula, farnel, segredo, mistério, de que os elementos de uma especialidade profissional procuram cercar os seus atos
bode2 - s.m. pop. homem muito feio (figurado), mulato, crioulo, indivíduo libidinoso, sátiro, protestante (gíria nordestina para designar os adeptos desta corrente do cristianismo), cada uma das figuras do baralho, em especial o valete, mil-réis (gíria antiga), estado de sonolência provocado por droga
bodeado - adj. chateado, amolado, amuado, mal-humorado
bode-expiatório - s.m. pessoa sobre quem se faz recair as culpas alheias ou a quem são imputados todos os reveses
bodeiro - s.m. criador ou matador de caprinos
bode-azul - especialista em comunicações (gíria da marinha brasileira)
bode-preto1 - especialista em máquinas (gíria da marinha)
bode-preto2 - pop. o demo, o coisa-ruim, o chifrudo, belzebu e outros sinônimos do diabo
bode rei1 - bode escolhido através de concurso para ser coroado como rei durante a festa tradicional de Cabaceiras, PB
bode rei2 - s.m. nome da festa realizada anualmente no município de Cabaceiras, PB, para enaltecer os valores da caprinovinocultura, fortalecendo a economia local, o desenvolvimento turístico e cultural da região
bode-rufiador - adj. diz-se o rufião
bode-rufião - s.m. pop. bode encarregado de atiçar as cabras (sem cobri-las) para identificar quais estão no cio
bode-verde - especialista em hidrografia (gíria da marinha)
bode-vermelho - especialista em armamento (gíria da marinha)
bodês* - s.m. pop. neologismo cabaceirense relativo ao vocabulário caprino, o "vocabodês"
bodeto - s.m. pop. bode novo
bode-velho - s.m. pop. homem velho metido a conquistador
bodiano - adj. neologista cabaceirense para designar tudo o que é relacionado ao bode
bodinho1 - s.m. diminutivo de bode, bode novo, cabrito
bodinho2 - s.m. pop. nome dado a carros populares (o antigo jeep, por exemplo), adolescente namorador
bodístico - adj. outro neologismo cabaceirense: diz-se de todo o universo caprino
bodum - s.m. fedor de bode não castrado, mau cheiro
bolotinho-de-cabra - s.m. brincadeira infantil, o mesmo que bostinha-de-cabra
caba - adj. pop. variação de cabra, "caba-ruim", "caba-bom"
cabra1 - s.f. a fêmea do bode, mulher que grita muito
cabra2 - s.m. adj. pop. homem do Nordeste, cangaceiro, bandido, pessoa de cor branca e cabelo crespo, filho de pai branco e mãe negra (ou vice-versa), mulher devassa
cabra arretado (retado ou arreitado) - s.m. pop. diz-se de um cabra bom, correto, merecedor de elogios (arretado é uma palavra-ônibus que indica numerosas idéias apreciativas)
cabra besta - s.m. pop. indivíduo vaidoso, metido a rico ou a bacana, orgulhoso, presunçoso
cabra bom - s.m. pop. cidadão decente
cabra caloteiro - s.m. pop. velhaco, aquele que não paga nem promessa a santo
cabra da peste - s.m. pop. diz-se do indivíduo valente, corajoso, competente
cabra frouxo - s.m. pop. diz-se do indíviduo covarde, medroso
cabra macho - s.m. pop. corajoso, valente, forte, viril
cabra nojento - s.m. pop. sujeito indecente, sem modos, vulgar
cabra ruim - s.m. pop. diz-se de quem é mau
cabra safado - s.m. pop. homem de má índole, sem vergonha
cabra sarado - s.m.. pop. indivíduo esperto, astuto
cabra-cega - s.f. brincadeira em que uma criança de olhos vendados tenta agarrar outra
cabrão - s.m. pop. criança que berra muito, corno, chifrudo
cabra-onça - s.m. pop. valentão
cabra-seco - s.m. pop. valentão, destemido
cabra-topetudo - s.m. pop. valentão, corajoso
cabreiro1 - s.m. pastor de cabras
cabreiro2 - adj. desconfiado
cabril - s.m. curral de cabras (OB o termo "aprisco", usado às vezes como sinônimo de cabril, designa curral de ovelhas)
cabriola - s.f. salto de cabras
cabriolar - v. dar cabriolas
cabrita1 - s.f. cabra pequena
cabrita2 - s.f. mestiça ainda nova
cabritar - v. saltar como os cabritos
cabritinho1 - s.m. cabrito novinho
cabritinho2 - s.m. pop. jovem moreno escuro ou mulato
cabritismo - s.m. pop. agitação, sensualidade, libidinagem
cabrito1 - s.m. bode novo, pequeno
cabrito2 - s.m. pop. criança inquieta, menino danado
cabroeira - s.f. coletivo, diz-se de um bando de cabras ruins, ou cabras feios ou bandidos
Cabruêra - s.f. nome de uma banda de música regional
capa-bode - s.f. planta da caatiga que serve para fazer vassoura, caipira, matuto, mocorongo
capro - s.m. o mesmo que bode
caprum - s.m. fedor
chupa-cabra - s.m. pop. apelido dado a um cabra muito feio
frei-bode - s.m. pop. diz-se de protestantes
mec-bode - s.m. sanduíche feito com hambúrguer de carne de bode, prato típico da gastronomia bodística cabaceirense
(Obs.: a grafia correta é "mec", conforme a pronúncia de "mac" em inglês)
mijo-de-ovelha - adj. Pessoa imprestável
pai-de-chiqueiro - s.m. o reprodutor, cabra fedorento
pé-de-bode - s.m. pop. apoio feito com as duas mãos para erguer alguém, sanfona de oito baixos
pé-de-cabra - s.m. alavanca de ferro com uma das extremidades fendidas à semelhança do pé da cabra, instrumento utilizado para arrombar portas
pega do bode - s.f. brincadeira realizada durante a Gincana do Bode Rei em Cabaceiras
pinga-bode - s.f. bebida alcoólica à base de cachaça e leite de cabra
pizza-bode - s.f. pizza recheada com carne de bode, prato típico da gastronomia bodística cabaceirense
vocabodário - s.m. neologismo criado para designar o conjunto de palavras e expressões bodísticas
vocabodês - s.m. diz-se do dialeto caprino
x-bode - s.m. sanduíche com queijo e carne de bode, prato típico da gastronomia bodística cabaceirense
xixi-de-cabra - s.m. licor refinado que não deixa "bafo de bode"

DITOS POPULARES
Isso vai dar bode - vai acabar em confusão
Amarrar o bode - ficar de mau humor
Estar de bode amarrado - mal humorado
Dormir com as cabras - estar fedendo
Vou capar o bode! - expressão utilizada pelo pai cuja filha foi desonrada por algum cabra safado
Não vou segurar cabra para bode mamar! - não facilitar as coisas para os outros, principalmente quando se trata de pessoas preguiçosas ou oportunistas, o mesmo que "não vou criar galinha para dar pinto a ninguém"
Prendam suas cabritas que meu bode está solto! - expressão utilizada por pais de adolescentes em fase de namoro, principalmente pelo pai orgulhoso da boa aparência e virilidade de seu filho
Olha só onde fui amarrar meu bode! - exprime a concordância com idéias malucas, se meter em confusão, entrar em famílias desajustadas etc.



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- Aonde vão as cabras?

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Quem já viu um boi voar?


"A queda atingiu o olho dele". Sentenciou o médico a Dona Anatil.Logo logo, todos superariam o pequeno desvio ocular dos olhos daquele menino. Afinal, não fora uma deformação congênita, mas uma marca registrada por um ato heróico daquela pequena criança que resolvera subir em um frágil "pé-de-pinha" para salvar um bebê-passarinho que acabara de cair do ninho.

Lá vai ele, todo decidido e com o passarinho preso em suas maõzinhas conseguiu salvá-lo. Pena que ao tentar descer da árvore um de seus galhos tíbios não fora suficiente forte para segurar aquele menino rechonchudo, que dali para frente, como lembrança de seu ato de pequeno herói, teria de conviver com os muitos incômodos que uma visão prejudicada pode causar a qualquer um.

Mas ele nunca se queixou. Quando falava no assunto, falava com orgulho, com saudade da infância, com alegria. Esse era Wilson Maux. O "boi véi" como eu o chamava e de quem sempre ouvia retrucar, logo em seguida, com o tom grave de sua voz: "tome tento, me respeite menina, eu sou seu pai". Daí, ele estendia a mão na mesa, porque sabia que eu daria uma bofetada em seus dedos, olhava para Ceição e resmungava "Ai Ceição, ela bateu em mim! E você não faz nada?" Perguntava cobrando dela uma atitude, cobrando dela que lhe ouvisse as manhas e birras e, como Ceição apenas franzia as sobrancelhas, ele dava um "michocho" feito criança turrona. E eu? Achava graça e lhe batia nos dedos novamente.

Depois nos sentávamos todos em volta da mesa, conversávamos, ríamos, comentávamos alguns poemas e ele lia a última crônica que eu não acordara a tempo de ouvir. Foi assim também quando escreveu "Segunda-feira triste", que na verdade foi um poema escrito uns dois meses antes de sua morte e que fora transformado em crônica no domingo que antecedeu a segunda, 17 de janeiro. Lembro bem quando ele pegou seus óculos, abriu a carteira e disse:

- Filha, escrevi algo, quero ler para você.

- Leia boi, tou ouvindo!

Quando acabou a leitura, como sempre me perguntou:

- Gostou?

- Não.

E ele rindo me disse:

- Menina, precisa ser tão sincera? Tá ouvindo isso Ceição?

Então expliquei:

- Não boi, não é que achei feio, é um poema bonito, mas é um pouco sinistro, como uma despedida... não sei... não me senti bem, achei muito pesado...só isso, mas é um texto bonito...

Nos calamos por alguns minutos. Em seguida ele me lembrou de uma palestra que havíamos participado em Cabaceiras, cujo mote eu tinha sugerido. Me falou de um novo convite para voltar naquela cidade, agora em 2011, e disse que só aceitaria o convite se eu garantisse que faria sua apresentação lá.

- Como daquela vez. Você faz?

- Claro seu boi véi. Vamos fazer sim. Essa foi uma de nossas últimas conversas.

Mas aí, não deu. Nem dará. O menino rechonchudo, leve como um passarinho avoou. Terá ido para o céu dos passarinhos? Não se sabe. E desde quando boi voa?

Voa sim. Desde que se tenha um coração de criança, uma alma livre como pássaro e um crédito no céu com um amigo passarinho de quem se salvou a vida. Assim, com todas essas credenciais Wilson Maux passou, passarinhou levado por um bando de outros passarinhos que vieram saudá-lo e guiá-lo para outros ares.

Êêêêêê boi! Foi como no dia que você voou de balão! Com a mesma leveza, foi subindo devagarinho como quem vai ficando. Voa boi! Voa bem!

Daqui debaixo te acharemos em um ninho qualquer, nas asas de algum passinho sonhador.

Geneceuda Monteiro, filha do coração de Wilson Maux
Campina Grande, 17 de fevereiro de 2011
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