quarta-feira, 5 de junho de 2013

"Eu fiz uma fogueirinha esperando meu amor..."




Quando abriu o guarda-roupa lá estava o vestidinho florido, usado na noite anterior. O cheiro morno da fumaça e vários furinhos desenhados pelas faíscas da fogueira registravam aquela noite de São João.

Que noite linda! Havia fogueira em todas as casas, de todos os tipos, para todos os gostos. Algumas representavam a própria cartase cotidiana, o desapego, o recomeço. Por isso, ardiam em chamas o velho sofá de molas, as pernas tortas da cadeira, duas portas de guarda-roupa, uma gaveta do armário, uma sanefa e muitas outras bugigangas. Parece que a festa junina, que representava a fartura da colheita, representava também uma espécie de rito de passagem, de mudanças.

E haja corre-corre, pula-pula, queima-queima, grita-grita.Os meninos usando chapéus de palha e calças e camisas remendadas exibiam orgulhosos seus bigodes e barba desenhados com carvão. Enquanto as meninas, com pontinhos desenhados nas bochechas rosadas, exibiam suas saías de babado, seus chapéus de trancinhas e lacinhos de fita. Estrelinhas coloridas disputando espaço com bombris amarrados em cordões, traques, cobrinhas, bombas-palito e canoas. Tudo era alvoroço. Aqui acolá alguém aparecia com um dedo, o cabelo, as mãos queimadas.

Chegava um vizinho, afastava um pouco a cinza da fogueira e sacava da velha grelha enferrujada para assar uma fatia de queijo de coalho, uma linguiça, um milho verde. Tudo tão improvisado, tão espontâneo, tão solidário.

Enquanto um balão de papel de seda ia subindo cambaleante, tirando fino na confusão das bandeirolas esticadas, alguém almejava derrubá-lo. De posse de um daqueles espelhinhos de bolso e uma faca de cozinha, o aventureiro "cortava" a imagem do balão vista no espelho na crença de que ele cairia. Pior é que, algumas vezes o balão caía de fato, não pelo vandalismo praticado, apenas de propósito para reforçar aquela tolice.

No terreiro, meninas juntavam alianças, bacias, prato, velas, facas - tudo  virgem - comprados no mesmo dia para as adivinhações.

Vamos ser madrinha de fogueira? Outra respondia: vamos. Daí eram feitos os seguintes votos: 
- Santo Antônio disse, 
- São Pedro confirmou, 
- Vamos ser comadres que São João mandou!
Assim, de braços estendidos sobre o calor da fogueira e saltando, de um lado para outro, crianças celebravam a amizade que seria eterna até a primeira intriga, fato cuja decisão seria igualmente cerimoniosa e anunciada através de um "corte aqui", feito através da ruptura da aliança formada entre os dedos polegar e o indicador.


Dentro das casas, o forró na sala caprichosamente ornamentado por "correntes" de papel de revista. Paulo Goulart, Davi Cardoso, Glória Menezes, Sônia Braga, os muitos ídolos bailavam dependurados ao som do Trio Nordestino, Marinês, Os 03 do Nordeste, Luiz Gonzaga e tantos outros.

A moça, sentada no alpendre cantarolava "é madrugada, até agora nada, meu bem não aparece... cadê meu amor?..."

Nas janelas, uma ou outra lanterna de papel seguia tremeluzindo, o lume se esvaindo lentamente, se dissipando feito fumaça, evaporando a lembrança.


Dobrou o vestido, guardou. Fechou o guarda-roupa.Cheiro empalhado na memória até o próximo São João, quando uma nova fogueirinha será acesa e suas brasas lhe chamuscarão a alma, mais uma vez.




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